“Book Descriptions: No prefácio a um livro curioso da sua autoria, José Rodrigues Miguéis escreve: “até que ponto pode um escritor falar das suas experiências pessoais, sem incorrer na pecha de subjectivismo e sem ser indiscreto a respeito de si próprio? Será possível, nesta época e num meio como o nosso, avesso por tradição e preconceito à literatura de confissões, que tem enriquecido e ajudado a esclarecer tantas outras culturas, usar da franqueza de um Rosseau, de um Stendhal, de uma Bashkírtseva, para não dizer já de um De Quincey ou Baudelaire?” A época a que Rodrigues Miguéis se refere podia também ser a nossa. O problema da confissão (se é realmente isso o que está em causa) mantém-se e será sempre um dos aperitivos preferidos da teoria da literatura. Ainda assim, talvez se insurja outro problema maior nos nossos tempos: a ficção deslumbrada consigo mesma, a ficção como conceito saturado, enquanto via profissionalizante, livre-trânsito do bom gosto, imitação da vida explicada como quem junta dois mais dois, sendo que o caso não se dá apenas em literatura. Mas voltando a esta: talvez desta vez o autor se tenha cansado de escrever “José disse” ou “Joaquina disse” quando foi ele que disse e mais ninguém. Talvez nestes tempos de passamanes não valha muito a pena embelezar um caminho esburacado, quando apesar de tudo são esses buracos que ainda lhe dão um nome.
Excerto:
Não me recordo de ter sido verdadeiramente infeliz em casa dos meus avós. Julgo que essas temporadas da infância e do início da adolescência não seriam susceptíveis de infelicidade, até porque era quase sempre Verão e eu era então muito novo. Nesses meses, eu vivia satisfeito, e digo-o sem as habituais reticências a que tantas vezes nos obriga o cinismo da idade adulta, e uma parte substancial dessa satisfação era resultante de um acesso quase ilimitado durante o dia ao quintal da casa dos meus avós, onde passava horas intermináveis a jogar futebol, a correr ou a praticar umas lutas com o meu irmão que deviam às mais rudes noções do karaté, do sumo e da luta livre.” DRIVE